quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

SERENATA MEDIEVAL

(AO SOM DE UM ARRABIL DE PRATA)

Rendeira! que fias rendas e toalhas brancas de luar
Com teu fuso de prata e as tuas mãos de neve polar...

Enlaça o fio, torce-o... tece...
Que eu quero ver de débil trama
O verso meigo que enternece
A estrofe rútila que inflama.

Seja de tule, gaze e arminho,
O canto simples que eu fizer
Cantando os gestos de carinho
Que andam nas mãos de uma mulher!

Rendeira! que fias rendas e toalhas brancas de luar
Com teu fuso de prata e as tuas mãos de neve polar...

De renda fina da Bretanha
Seja o soneto; tece o ideal
Com mais leveza do que a aranha
Que tece teias de cristal...

E um sonho, todo, muito fino,
De aurora, riso, rosicler,
Dia no lenço pequenino
Que anda nas mãos de uma mulher!

Rendeira! que fias rendas e toalhas brancas de luar
Com teu fuso de prata e as tuas mãos de neve polar...

Com a luz que vem dos olhos dela,
Faze um véu brano — cor da lua,
Estranho manto de áurea tela
Para vestir minh'alma nua.

De seda tece o meu queixume,
Rendilha o sol que eu quiser...
Que lembre a graça do perfume
Que anda nas mãos dessa mulher!

A BRUXA DAS QUATRO TAÇAS

A Vida, feiticeira dos destinos,
Deu-me três taças, para que eu bebesse
Dos seus vinhos mais finos.

A primeira era fluida, etérea e fria,
Como cavada numa bolha de ar,
E estava cheia de uma luz que ardia
Dentro das almas, como, à noite, o luar...
Por ela se bebia a Volúpia do Céu.

A segunda era feita em carne; ansiava
Como um dorido coração na dor...
Seu vinho, sangue ardente como lava,
Queimava as almas num verão de amor...
Por ela se bebia a Volúpia da Terra.

A terceira era fogo, ainda mais quente:
Como um sol dardejando e minha mão,
E e estava cheia de um licor fervente
Que me queimava a boca e o coração...
Por ela se bebia a Volúpia do Inferno.

Mas havia outra taça, uma cratera,
— Velho crânio por onde, a todo instante,
Ela, a Vida, bebia um vinho que era
Como um néctar de flor doirado e ebriante.

Então lhe perguntei: Por que motivo
Não me dás de beber desse hidromel?
Tenho mais sede, ardo num lume vivo
Depois que te esgotei as três taças de fel.

E ela me disse: — Um dia, meu amigo,
Ao fim do amor, do sonho e da desgraça,
Na última festa que hás de ter comigo
Terás também do vinho dessa taça:
Por ela é que se bebe a Volúpia da Morte.

Do livro: "Ouro, incenso e mirra", Oficinas Gráficas Guido & Cia, 1931, RJ

Dentro de cada ser, à sombra da alma,
Dirigindo-lhe os passos e as ações,
O crime adeja, à espreita da hora incalma
Dos desvarios e alucinações.

E quando soar, em doze badaladas,
A meia-noite da destinação,
Há de ficar com as mãos ensanguentadas
Quem tiver um punhal ao alcance da mão.

PUNHAL ASIÁTICO

(UMA PÁGINA DO DIÁRIO DE UM LOUCO)

Não sei por que dantesco desvario
Eriçava-me todo em volúpia e terror
Ante aquele punhal, que era o orgulho sombrio
Daquele velho colecionador!

Cintilante punhal de feitura bizarra,
Tendo estranha inscrição na folha aguda e forte,
Recordada à feição ferina de uma garra
Em tateios de morte!

Dançava no seu cabo de ébano labrado
Com embutidos de âmbar e marfim,
Um pesadelo de almas em pecado,
Na epilepsia do fim...

E por entre essa turba atormentada,
Que se estorcia em contorções cruéis,
Longas serpentes de olhos de granada
Desenrolavam seus anéis.

Tinha aquele punhal precioso e flexível
Um nefasto poder, difícil de explicar,
Que acendia em meu sangue um desejo incoercível,
Que eu nunca tive, de matar!

Só de vê-lo sentia uma volúpia amarga,
E sem saber porque, num gesto maquinal,
A minha mão nervosa e larga
Apertava com febre o punho do punhal!

Então, brandindo o fero coruscante,
Meu braço, como o braço do assassino,
Apunhalava, a esmo, o ar circundante,
Ferindo a própria sombra em desatino.

Um dia — quando e como, é que não sei,
Por mais que me interrogue, acabado de dor, —
Despertei nesta cela. E dizem que matei
Aquele velho colecionador!...